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filme 3º ano

filamentos, origem
2023-out / 30’00’’ / cor / 16:9 / som direto com banda sonora /curta-metragem

filme documentário realizado no âmbito do 3º ano de cinema - curso de cinema/imagem em movimento no ar.co escola de artes.


sinopse
os homens nascidos em maio de 1941, em portugal, cresceram e formaram a sua identidade numa época em que ser homossexual era não só uma doença, mas também um crime punido pelo código penal com pena de prisão. a afirmação da identidade destes homens gay fez-se num contexto muito diferente da atualidade, continuando a ser difícil para a maioria dos homens gay nascidos em maio de 1941 e ainda vivos, assumir a sua identidade plena. neste contexto, continua a ser muito difícil para a maioria destes homens afirmar a sua identidade no momento de entrar para um lar, tornando o envelhecimento num processo de evaporação da identidade e da individualidade, um processo comum a quase todas as pessoas, mas com características particulares que interessa observar e nas quais interessa refletir.

antónio évora é um destes homens, nascido a 24 de maio de 1941, ator de profissão, residente na casa do artista, em lisboa, aceitou conversar sobre o seu percurso de vida e o seu envelhecimento. antónio reflete sobre a sua vida e connosco viaja para explorar as vidas dos homens gays nascidos em maio de 1941. através de antónio podemos convocar qualquer coisa do que possa haver de comum nestes homens.


trailer


elenco
antónio évora
nuno gonçalves

equipa técnica
fotografia
bruno mairos
nuno gonçalves

direção de som e perche
bruno mairos
nuno gonçalves

pós-produção de som
nuno gonçalves
 
montagem e pós-produção
nuno gonçalves

produção
nuno gonçalves

realização
nuno gonçalves


apoios
casa do artista
blx-hemeroteca municipal de lisboa
arquivo municipal da câmara municipal de oeiras - oeiras valley
arquivo municipal da câmara municipal de sesimbra
biblioteca de arte da fundação calouste gulbenkian
câmara municipal de lisboa  |  arquivo municipal de lisboa
cinemateca portuguesa


agradecimentos
afonso da silva
carla gomes
família cavalheiro
inês oliveira
inês sapeta dias
joana cunha ferreira
jorge carvalheiro
margarida barata
nuno miguel gonçalves
pedro carreira
ricardo guerreiro
teresa amor


música
we are family, sister sledge (1979)
canção do engate, antónio variações (1984)
he's funny that way, bob dylan (2018)


declaração de intenções
ser uma pessoa homossexual é, nos dias de hoje, muito mais fácil do que foi outrora. não há uma medida do quão fácil ou difícil é ser-se “assumido” em relação à orientação sexual, o que quer que isso venha, na verdade, a ser, mas é notória a alteração da sociedade quanto a este tema, apesar do muito que ainda há a percorrer.

a despenalização da homossexualidade, sim era um crime, foi há 41 anos (1982) e, mais uma vez a várias velocidades, a desclassificação como doença foi a partir de 1973 pela associação americana de psicologia, ou tão tarde como 1990 pela oms, seguida pela maioria dos manuais portugueses. até então, ser-se homossexual era, não só ser-se criminoso, mas também ser-se doente. repito. as pessoas homossexuais eram (à luz da lei) criminosas e (à luz da ciência) doentes.

as pessoas que nasceram em 1973 têm hoje 50 anos. quem nasceu antes de 1973 nasceu num contexto de enorme violência e repressão sobre as pessoas homossexuais, homens e mulheres. e desengane-se quem acredita que esse estigma se alterou radicalmente com as alterações na lei e nos manuais médicos, ou até mesmo no 25 de abril de 1974, pois este “não se fez para putas e paneleiros”, como foi dito pelo general galvão de melo naquela altura.

assim, ter-se nascido, ou construído, homossexual nos anos 30, 40 ou 50 do século xx, era sinónimo de ser-se quase sempre colocado perante uma opção. não a opção da orientação sexual que, sabe-se bem, não é nem nunca foi uma opção. refiro-me antes à opção de se ser assumido, ou armariado, palavras do jargão que significam que perante algumas situações se optava por assumir a orientação homossexual, ao passo que perante outras situações se optava por se fingir uma heterossexualidade falsa, assim colocando a homossexualidade trancada no armário. não conheço ninguém, ninguém mesmo, que tenha sido totalmente assumido, ou totalmente armariado. a opção pendia para um lado ou para outro, dependendo de muitos fatores. era-se, é-se, mais assumido e visível perante os amigos, ou perante outras pessoas com que se cruzava nas ruas, raramente no trabalho e nalguns casos na família, e nem sempre a todos os familiares. ou então, era-se mais armariado, perante quase todas as outras pessoas, às vezes só não sendo armariado perante parceiros sexuais fortuitos, engatados em locais insuspeitos, escusos, e quase sempre longe da vista de pessoas conhecidas.

era, pois, uma opção possível ser-se mais assumido, e estas pessoas raramente constituíam família, muitas vezes afastavam-se ou eram afastadas das suas famílias, eram evitadas pelos amigos de outrora, tornavam-se estorvos e acabavam isoladas socialmente, muitas vezes privando apenas com um punhado de pares, em situação idêntica, a quem poderiam chamar família de adoção.

por contraste, era uma outra opção ser-se mais armariado, muito armariado, casos em que maioritariamente as pessoas constituíam família, dita heterossexual, com ou sem filhos, mas com uma validação social clara e contundente. esta situação foi muitíssimo comum, provavelmente esmagadoramente maioritária, nas pessoas que nasceram nos tais anos 30 a 50 do século xx. estas pessoas puderam constituir relações sociais potencialmente mais sólidas, com prole e grupos de amigos, num ambiente heteronormativo.

chegadas à velhice, as pessoas que nasceram entre os anos 30 e os anos 50 têm hoje entre os 70 e os 90 anos, aproximadamente. estas pessoas são, hoje em dia, no ano de 2023, parte considerável da população dos lares e casas de repouso para pessoas maiores, como é hoje mais aconselhado dizer-se.

a serem corretas as estimativas do relatório kinsey (1948) sobre o rácio da população com orientação sexual dita “homossexual”, cerca de 10% de toda a população dos lares é homossexual (gay ou lésbica). estudos mais recentes apontam para que o rácio seja consideravelmente superior a este valor, introduzindo o conceito de escala na orientação sexual, abandonando, pois, o binarismo neste sentido, assim como em muitos outros sentidos.

ora, se 10%, ou 15%, das pessoas que residem em lares e casas de repouso são homossexuais, por que razão não conhecemos mais histórias daquele senhor velhinho gay, ou daquela senhora velhinha lésbica, que vivem no lar onde estão o meu avô, ou a minha avó? não será que também um deles, ou ambos, são gay e lésbica? a resposta a este quase paradoxo é que a formatação fortemente repressora e estigmatizante em que nasceu a maioria das pessoas maiores é de tal forma implacável, que a maioria destas pessoas acaba por assumir uma atitude quase exclusivamente armariada nos lares, para usar os termos que escolhi acima. ora, muitas das pessoas que um dia viveram uma maior transparência e plenitude identitária como homossexual, mais facilitada também após o 25 de abril, hoje não sentem a coragem e empoderamento necessários para continuar a viver a mesma liberdade dentro dos lares, recolhendo-se ao armário de onde só saem para a viagem eterna.

há um enorme caminho a fazer nos lares com estas pessoas, para que não se sintam excluídas, reprimidas e desrespeitadas. não podemos, enquanto sociedade que se preocupa com todas as pessoas, deixar à margem as pessoas homossexuais de idade maior. é preciso contar as histórias destas pessoas, é também urgente formar as pessoas que trabalham nestes espaços, para que tenham a sensibilidade e o carinho necessários para lidar com estes utentes que já contam com muitos anos, muitos dos quais com uma carga de sofrimento elevada, ou que não têm rede social de apoio, físico e emocional.

é neste contexto que, enquanto homem gay nascido em 1976, me sinto compelido a dedicar este projeto a esta temática premente. sinto a urgência, assim como sinto o tempo que passa por mim e me faz maior em idade, a olhar para o meu futuro. sinto-me compelido a contar estas histórias sem, contudo, ter a pretensão de ser sequer capaz de julgar os caminhos, chamei-lhe opções, de tantas pessoas com respostas diferentes e individuais ao mesmo problema.

este projeto pretende ser o início de um projeto de maior alcance, para registo de testemunhos orais de pessoas homossexuais nascidas entre os anos 30 e os anos 50 do século xx. pretendo procurar homens gay, nesta fase, que queiram dar o ser testemunho, dando-lhes palco para que possam falar sobre as suas identidades, os seus percursos de vida e as suas velhices.

filamentos, origem é o início de algo que pretende relatar, numa pluralidade de curtas-metragens, as vidas de muitos homens de idade maior, como elemento último de resistência, pela igualdade, pela liberdade.

enquanto feminista e pelos direitos da população lgbti e, sobretudo, enquanto pessoa, sinto-me ainda compelido a chamar a atenção para este problema que, como disse, temos o dever de corrigir.


                    dizem que a paixão o conheceu
                    mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
                    senta-se no estremecer da noite enumera
                    o que lhe sobejou do adolescente rosto
                    turvo pela ligeira náusea da velhice

                    conhece a solidão de quem permanece acordado
                    quase sempre estendido ao lado do sono
                    pressente o suave esvoaçar da idade
                    ergue-se para o espelho
                    que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

                    dizem que vive na transparência do sonho
                    à beira-mar envelheceu vagarosamente
                    sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
                    nenhum ofício cantante
                    o tenha convencido a permanecer entre os vivos

                    dizem que a paixão o conheceu, al berto, in o medo, 1987


tratamento cinematográfico
os testemunhos orais fazem parte da tradição antropológica desde há muito tempo. é através destes testemunhos orais, quase sempre relatados na primeira pessoa, que o conhecimento, cultura dir-se-ia, vai passando de geração em geração, sendo refinado e reorganizado, mudando de forma e até de conteúdo com o passar do tempo.

mas dos malditos e dos proscritos, dos tímidos e dos tíbios, não se conhecem normalmente as estórias. dos tempos passados conhecemos sobretudo as estórias dos vencedores da história, as estórias dos perdedores da história, contadas pelos vencedores ou pelos relatores destes, e muitas fábulas.

o cinema trouxe muitas possibilidades, quer no que toca ao registo das estórias, hoje em dia de quase todas as pessoas, vencedoras, perdedoras ou nem por isso, quer no que toca à construção das narrativas perpetuadas. o cinema instalou-se na função de registo destas estórias e da construção das suas narrativas, seja do ponto de vista tradicional, ou seja, do ponto de vista da realização, seja também do ponto de vista do próprio, do self dir-se-ia no inglês, ou seja, da autorrealização, hoje que tão ubíquas são as câmaras dos telemóveis.

as estórias contadas na primeira pessoa contêm componentes pessoais, mas também componentes populacionais, muitas vezes contadas na terceira pessoa, componentes essas que representam grupos ou coletivos de pessoas, ligadas por experiências, vivências ou características das mais variadas formas e feitios. interessam sempre ambas.

é neste contexto que me interessa contar as estórias dos homens gay nascidos entre os anos 30 e os anos 50 do século passado, não só dos famosos, dir-se-iam vencedores, mas isso é tão efémero, mas também das pessoas comuns, que viveram, e vivem, vidas despretensiosas.

voltando ao testemunho oral, este é um registo de retrato fílmico que me interessa explorar para construir uma miríade de filamentos de identidade. filamentos de identidade que sozinhos não dão expressão a uma identidade coletiva, mas que em conjunto, em maior número, dão um esboço de uma identidade coletiva latente.

é, pois, que surge “filamento, origem”, a origem de um projeto mais amplo. assim pretendo realizar uma série de curtas-metragens, o tempo necessário e suficiente para um filamento, tencionando realizar os necessários até que a identidade latente, a existir, possa emergir naturalmente do emaranhado de filamentos, criando um arquivo de testemunhos orais.

o percurso das entrevistas deverá passar pelas estórias pessoais destes homens, pela afirmação da sua homossexualidade e a relação desta com o seu percurso de vida, também pela sua relação com o corpo e a chegada à idade maior, os receios e expectativas geradas e os seus percursos, a forma como habitaram o espaço no passado e o fazem no presente.

é também parte integrante da minha linguagem artística criar uma relação intersticial dos filmes com imagens de arquivos que de alguma forma remetem para o conteúdo do próprio filme, e que ajudam a transmitir um ponto de vista, o meu ponto de vista, enquanto realizador. a utilização de inserts é, como disse, integrante desta linguagem cinematográfica que me caracteriza.

por último, resta-me acrescentar que mais do que seguir um guião de entrevista, o que pretendo fazer, e já fiz em “filamentos, origem”, é ouvir os homens entrevistados, dando-lhes tempo para desenvolver as narrativas, na certeza de que o pior que possamos fazer é julgar os seus percursos, as suas opções ou os seus caminhos de vida. e não queremos julgar, apenas interessa ouvir e refletir.





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lisboa, 2021